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Henrique Costa

Como organizar um banco de questões com o aplicativo Bear (para Mac)

Se você é professor ou pretende organizar seus próprios estudos jurídicos a partir de questões objetivas, existem basicamente duas opções. Você pode utilizar alguma plataforma de questões (como o Qconcursos ou outros concorrentes) ou pode seguir uma apostila já preparada, geralmente um material impresso ou pdf elaborado por um curso que você frequente.

No meu modo de ver, as vantagens oferecidas pelas plataformas de questões são muito significativas. Afinal, dependendo do plano que você assine, será possível montar simulados, consultar comentários de professores, pesquisar com base em filtros, etc. E isso é especialmente importante se você está em um ambiente competitivo, como é o caso da preparação para concursos públicos.

Consciente dessas vantagens, resolvi me empenhar para oferecer aos meus estudantes a possibilidade de se prepararem para a prova (a minha ou outras provas jurídicas) com o auxílio dessas ferramentas. Afinal, as plataformas de questões são uma fonte inesgotável de conteúdo gratuito e precisavam apenas ser adaptadas para a minha finalidade.

O primeiro passo é naturalmente copiar e colar as questões da plataforma de sua preferência, organizando esse acervo de alguma forma.

O problema está em que não basta ter o banco de questões. Eu precisava também ter um ambiente no qual eu pudesse tomar notas e planejar a elaboração das provas. Além disso, eu precisava de uma ferramenta de busca para recuperar facilmente uma questão e as anotações sobre o gabarito. Ou seja, era preciso criar uma base de conhecimento. Depois de experimentar diversas soluções, terminei adotando o aplicativo Bear.

Enquanto o aplicativo é anunciado como uma ferramenta genérica construída para que o usuário tome notas (coluna da direita), ordenadas por uma lista (coluna central) e organizada em torno de tags (coluna da esquerda), minha utilização teve a seguinte meta: etiquetar cada alternativa das questões para que eu tivesse condição de saber exatamente quais os artigos de lei seriam cobrados em toda a prova. O meu Bear ficou assim organizado:

A melhor parte dessa organização é que ela torna possível expandir, em um formato de árvore, toda a lista de artigos citados. Assim, tenho certeza de que estou cobrindo bem o conteúdo, tanto nas alternativas corretas quanto nas incorretas.

Em resumo, como professor de Direito, optei por oganizar provas objetivas para os estudantes de todas as disciplinas que leciono. Acho que é uma forma muito justa de avaliar os estudantes, especialmente em matérias de conteúdo dogmático. Nessa jornada, percebi que a etapa de organização das questões era uma fase crítica para o meu planejamento.

Descobri também que existe uma série de ferramentas (por exemplo, os editores de notas no estilo Zettelkasten) que ajudam a solucionar esse problema. A que mais se adaptou ao meu modo de trabalho foi a organização em torno de tags, que é justamente a vocação do aplicativo Bear. Aliás, todas as funcionalidades que utilizo são cobertas pelo plano gratuito do aplicativo.

Por fim, ainda que você não tenha a mesma demanda que a minha, acho que vale experimentar, pois criar o hábito de tomar notas de forma organizada ajuda a resolver uma série de outros problemas típicos de quem trabalha com a organização de informações e a redação de textos.


PS1: Bear é um aplicativo de anotações para Mac, concebido em torno de uma  ferramenta avançada de etiquetamento aninhado (nested tags). Apesar de parecer simples, é uma solução bastante complexa e única, que permite criar uma navegação hierárquica nos assuntos do seu interesse.

Infelizmente, por se tratar de uma abordagem exclusiva do Bear, o usuário Windows precisará encontrar sua própria forma de organização dentro das outras opções disponíveis: OneNote, Evernote, Boostnote, etc. Nenhuma delas conta com etiquetamento aninhado.


PS2: Novo post sobre como corrigir provas objetivas pelo celular.

As habilidades do jurista do futuro

Texto apresentado no VIII Congresso Internacional de Direito do Trabalho, realizado em outubro de 2018.

Reformulando a questão

Honestamente, não sei responder à pergunta que me foi proposta: “Quais as habilidades o trabalhador do futuro terá (ou precisará ter)?”

De todo modo, é uma questão que me intriga e, por isso, gostaria de pelo menos responder a uma pergunta conexa, mas menos abrangente. Então tomarei a liberdade de reformular o problema, enfrentando o assunto dentro daquilo que me parece pertinente e possível de ser respondido: Quais são as habilidades que o jurista do futuro terá (ou precisará ter)?

Isso se confunde um pouco com uma exposição sobre o que tenho feito academicamente e com aquilo que está acontecendo no mundo como um todo, por assim dizer, da indústria jurídica. Sei que esse nome não é o ideal, mas ao menos parece fiel ao fato de que o Direito existe como um campo da cultura, ao mesmo tempo em que existe como um ramo de atividades profissionais. Afinal, é com a prática do Direito que o jurista ganha a vida.

No meu modo de ver, como docentes, empenhamos muita energia em introduzir os bacharelandos no mundo do conhecimento jurídico, mas praticamente ignoramos que o estudante de graduação precisa também pensar como exercerá sua atividade profissional.

Atentos a esse fato, professores de Harvard organizaram o Center on the Legal Profession, cuja missão é assim declarada: prover uma compreensão mais rica das rápidas mudanças que estão ocorrendo globalmente nas profissões jurídicas. Apesar de tal centro oferecer uma reflexão bastante rica sobre a advocacia globalizada, esse traço é também limitante, tendo em vista que se propõe a avaliar justamente a advocacia que serve às empresas globais.

Diante disso, o futuro da advocacia local - como um mercado totalmente diferente do globalizado - demanda reflexão própria. E, do mesmo modo, todas as profissões jurídicas que não se enquadram dentro da advocacia precisam ser observadas de outros pontos de vista.

A história brasileira desde as primeiras faculdades

Com a invasão de Portugal pelos franceses, em 1808, sucedeu a transferência da corte portuguesa para o Brasil. Em decorrência disso, houve uma série de evoluções locais, por exemplo, a abertura dos portos, a construção de fábricas e a fundação do Banco do Brasil.

Em 1822 o Brasil veio a se tornar independente, o que estimulou a criação de dois cursos de Direito em 1827, de modo que a elite residente no país tivesse condição de estudar sem voltar para a Europa. Nesse cenário, é possível imaginar que as profissões jurídicas tenham sido bastante diferentes do que temos hoje, organizando-se, basicamente, em torno da missão de estruturar um jovem país independente. Assim, as primeiras faculdades de Direito foram responsáveis por prover a elite que ocuparia os postos políticos e administrativos do Brasil.

Somente por volta de 1930, com o crescente processo de industrialização, teve início a organização do direito empresarial. Até então, os assuntos relativos à propriedade, família e sucessões eram os mais importantes para a prática jurídica. Com a Segunda Guerra Mundial, o crescimento da indústria foi ainda mais acelerado, demandando a organização jurídica dos assuntos bancários, contratuais, exportações, entre outros.

Outro aspecto relevante é que, também durante a Era Vargas, ocorreu um crescimento do papel do Estado, criando demanda para a evolução do direito público, especialmente do direito administrativo. No entanto, mesmo diante da demanda por uma atuação técnica mais especializada dos profissionais do Direito, isso não ofuscou a presença da formação jurídica como uma das características essenciais dos políticos brasileiros.

Somente após 1964, com a instauração do Regime Militar, o cenário viria a mudar. Em que pese as liberdades civis e os direito humanos tenham sido negligenciados no período, alguns ramos jurídicos mais técnicos passaram por evolução considerável. São marcos do período a criação do Banco Central, do Conselho Monetário Nacional, além de desenvolvimentos nos campos do Direito tributário e societário.

Ao longo das décadas de 70 e 80, aumentou o número de advogados brasileiros que complementaram sua formação nos Estados Unidos. E, nos anos 90, com o avanço da globalização, esse tipo de serviço passou a ser ainda mais demandado. Tal demanda ocorreu em duas frentes, tanto pela ampliação da atuação das empresas brasileiras no exterior, quanto pela chegada de investimentos estrangeiros especialmente em decorrência das privatizações e novas concessões em andamento.

A partir desse momento, o mercado da advocacia brasileira passou a contar com uma força de trabalho realmente organizada e orientada a atender à demanda de uma economia globalizada.

Mas essa parte da advocacia brasileira sempre foi minoritária, tendo em vista que, ao mesmo tempo, cresceu enormemente a oferta de vagas nos cursos de Direito. E a maioria desses profissionais viriam a prover serviços em uma dinâmica interna que nada se relaciona com a globalização e que, muitas vezes, é uma resistência ao avanço de sua cultura.

Especialmente na última década, quanto alguns escritórios estrangeiros chegaram ao Brasil (por exemplo, Mayer & Brown e DLA Piper) enfrentaram forte resistência. O maior opositor da investida estrangeira é Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), da qual fazem partes grandes escritórios brasileiros. A resposta da OAB à demanda do Cesa, embora não tenha encerrado as parcerias operacionais entre os mencionados escritórios estrangeiros e seus respectivos parceiros brasileiros, levou ao fim da dupla Lefosse e Linklaters, escritório britânico com atividades no Brasil desde 2001.

Existe, portanto, uma tensão que não se dissipou totalmente entre os escritórios estrangeiros e a advocacia local. Cada vertente representa uma cultura e demanda profissionais com diversos perfis. Esse é um dos motivos pelos quais não podemos pensar no futuro das profissões jurídicas no Brasil somente a partir de constatações e reflexões promovidas por centros de estudo estrangeiros.

As competências para quem já está no mercado

Um escritório grande, por exemplo, com mais de cem advogados, é marcado por duas características: a primeira é que sua vantagem competitiva consistente em manter o seu cliente abrigado em todas as suas necessidades; a segunda, bastante relacionada à primeira, consiste em que cada advogado atua segundo sua especialização. Existe, portanto, um grau relevante de impessoalidade no trato.

Em razão dessas características, um advogado de um escritório grande (big law) deverá responder à cultura do escritório e seu progresso é relativamente previsível dentro da organização, baseado na pauta desses valores. Atualmente os escritórios grandes tentam passar uma imagem de inovação, não apenas de tradição. Isso se deve ao fato de que a forma de organização do big law passa por enormes ameaças no mundo inteiro.

Embora seja compreensível que os grandes escritórios não demonstrem sua vulnerabilidade publicamente, é fácil verificar sua existência a partir de uma linha de pesquisa do Center on the Legal Profession de Harvad, chamada “The reemergence of the Big Four in Law”. Isso significa que as grandes firmas de contabilidade, que são muito maiores e mais eficientes que qualquer escritório de advocacia, estão avançando agressivamente sobre o mercado.

Em face disso, no meu modo de ver, precisam estar entre as competências de um futuro sócio de um grande escritório de advocacia: conhecimento sobre o atual modelo de negócio da advocacia; conhecimento sobre os modelos de negócio alternativos; e conhecimento sobre as forma de integração dos serviços jurídicos com serviços de apoio.

Penso que nenhuma competência tecnológica seja relevante para figurar como advogado desse mercado, tendo em vista que a grande ameaça deriva de uma questão negocial.

O modelo de negócio dos escritórios internacionais está ameaçado e, na minha opinião, os sócios que souberem como promover a defesa de suas organizações serão recompensados.

Em contraste, para o mercado nacional e para os escritórios menores, considero que os juristas do futuro precisam investir em outro rol de competências. Como seu mercado não está propriamente ameaçado pelas grandes firmas de contabilidade, não existe contra ele um risco de máxima magnitude.

No entanto, esse tipo de advocacia precisará lidar com adversidades: o potencial aumento de tecnólogos do Direito, o que tende a reduzir as margens em serviços de menor valor agregado; e o aumento da concorrência local, tendo em vista que plataformas de processo eletrônico permitirão uma concorrência nacional em qualquer mercado contencioso.

Como consequência, os escritórios de advocacia menores tenderão a atuar em nichos cada vez mais determinados, mas sem limitações territoriais. Então, no meu modo de ver, o futuro pertence ao especialista. Suponho que o generalista venha a perder espaço também em razão do amadurecimento das plataformas que deverão servir informações sobre a qualidade e a reputação de cada escritório, de maneira que o especialista possa ser mais facilmente encontrado.

Tudo leva a crer que o custo de encontrar um bom advogado a um preço justo será diminuído por meio de plataformas virtuais que venham a promover o equilíbrio entre a oferta e a demanda por tais serviços.

Suponho que pequenos escritórios venham a ganhar com isso, pois serão mais eficientes em prover diretamente o trabalho, sem fazer frente aos grandes custos de manutenção de um escritório luxuoso ou voltado a manter relações comerciais a partir das aparências.

Por fim, quanto ao setor público, existe uma dinâmica ainda mais diferente. Suponho que o serviço público venha a passar por tempos de restrição orçamentária, o que vai demandar do gestor maior produtividade. Do ponto de vista da chefia, mais produtividade demandará um aprendizado sobre gestão de equipe de uma maneira ágil e orientada a resultados. Afinal, o gestor público precisará fazer mais com menos. Essa demanda parece ter se intensificado nos últimos meses.

Ainda quanto ao ambiente público, do ponto de vista do servidor público subordinado, competências complementares às da chefia serão valorizadas, por exemplo, a capacidade de montar um sistema computacional de baixo custo a partir de serviços prestado via nuvem. Isso não demandaria a capacidade de escrever em linguagem de computador, mas certamente demandaria uma mente mais analítica do que a tradicionalmente orientada por habilidades verbais e de comunicação.

Imagino assim que a era da valorização da eloquência e da capacidade de expressão tenha chegado a um ponto em que tais virtudes passarão a concorrer com outras competências desejáveis. Sob esse enfoque, as qualidades tradicionais de um jurista passarão a ter menos valor. Sobretudo o conhecimento decorado e irrefletido passará a ter menos valor do que já tem hoje, pois os sistemas de recuperação de informação tendem a ser aprimorados.

Enquanto a iniciativa privada tem, naturalmente, mais agilidade para se adaptar e modificar o perfil de sua força de trabalho, o concurso público tem um formato rígido e legalmente imposto. Assim, o poder público tende a manter um formato antiquado de seleção de servidores, sendo desejável que invista em soluções para aprimorar as competências da sua força de trabalho já em atividade.

As competências para quem ainda vai entrar no mercado

O Ministério da Educação publicou recentemente, por meio da Resolução 05/18, novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Direito. Entre as novidades estão a preocupação com o fortalecimento das formas consensuais de composição de conflitos. Além disso, o MEC entende desejável que os egressos do bacharelado em Direito sejam capazes de trabalhar em um ambiente de diversidade e pluralismo cultural, desenvolvendo capacidade de trabalho em grupo e em contexto interdisciplinar.

Do ponto de vista tecnológico, o MEC estabeleceu que o curso de Direito deverá possibilitar a formação de competências para que o bacharel compreenda o impacto das novas tecnologias na área jurídica. Penso que foi acertado ao MEC não enumerar quais seriam essas tecnologias, pois realmente o escopo das Diretrizes Curriculares é orientar genericamente a elaboração do Projeto Pedagógico de Curso.

No que concerne, portanto, aos mais jovens, cuja formação ocorrerá sob as Diretrizes Curriculares atuais, o impacto da inovação será ainda maior sobre suas carreiras. O reconhecimento, por parte do MEC, de que a tecnologia desempenhará um papel protagonista nas profissões jurídicas surge, no meu modo de ver, como um diagnóstico conservador.

Com uma postura mais arrojada, Richard Susskind (Susskind, 2017) propõe uma série de novas atividades, as quais seriam desempenhadas pelos novos advogados, num futuro em que devem ser dotados de menos prestígio profissional. São elas: consultoria jurídica desempenhada por advogados em casos extremamente especializados, nos quais o profissional tenha uma forte relação de confiança com o cliente; bem como atividades de apoio tecnológico a essa consultoria.

Para além disso, Susskind sustenta que serão criadas novas profissões, resumidas aqui em tradução livre.

Os Engenheiros de Conhecimento Jurídico seriam os advogados responsáveis por analisar e parametrizar a linguagem e os conceitos jurídicos para que possam ser incorporados a programas de computador. Já os Engenheiros de Tecnologia Jurídica seriam uma profissão que até hoje foi desempenhada por pessoas de uma dessas duas áreas: Direito ou Tecnologia. Sua missão seria viabilizar o consumo de serviços jurídicos independentemente da mediação de um advogado.

Passariam a existir também Advogados Híbridos, igualmente versados em duas áreas do conhecimento, cuja missão seria, por exemplo, criar uma estratégia de negociação ou atuar como psicólogos. O autor reconhece que, de algum modo, essa prática já existe, mas o que propõe é que o advogado não tenha apenas uma noção da área do conhecimento de forma secundária, exibindo sólida formação em igualdade de condições com seu conhecimento jurídico.

Uma variação desses profissionais seriam os Cientistas de Dados Jurídicos. Eles precisariam ter sólida formação em matemática, estatística e programação. Ou seja, tal descrição não é a de um advogado que opera sistemas de computador já prontos, pois, para o desempenho dessa atividade, é necessário capturar, analisar e manipular grandes quantidades de dados com bastante desenvoltura técnica.

Assim como hoje a indústria de eletrônicos e a farmacêutica contam com laboratórios de inovação, Susskind aponta que devem passar a existir os Profissionais de Pesquisa e Desenvolvimento em Direito. Eles seriam responsáveis concepção de serviços e soluções a partir de técnicas experimentais, atuando com muito mais liberdade do que os profissionais alocados na parte operacional dos escritórios e das empresas ligadas à área jurídica.

Susskind menciona também que outra profissão seria a dos Analistas de Projeto Jurídico. Tais analistas não se confundiriam com meros operadores de sistemas já prontos, consistindo sua prática na decomposição de tarefas a serem distribuídas a diversos fornecedores. Sua função seria desagregar as tarefas de um projeto, terceirizando a execução, cuja gestão estaria a cargo de um outro tipo de profissional, o Gestor de Projeto Jurídico.

Assim como as gigantes da contabilidade criaram um ramo de prestação de serviços de consultoria a partir dos seus negócios iniciais de auditoria, Susskind acredita que os escritórios de advocacia devem evoluir em uma direção similar, criando as condições para o estabelecimento dos Consultores de Gestão Jurídica.

Embora, por exemplo, as atividades de gestão e instrução de equipes já existam dentro dos departamentos jurídicos, geralmente são prestadas de forma pouco especializada. Outros serviços que seriam abarcados por essa atuação profissionais incluem: análise da cadeia de valor, estruturação organizacional, recrutamento de profissionais, gestão da informação, etc.

Há ainda uma parte muito específica desse tipo de serviço, concernente à identificação, quantificação, monitoramento e prevenção de riscos. Esse seria o campo de atuação dos Analistas de Risco Jurídico. Seu papel seria auxiliar os Diretores Jurídicos, em uma frente na qual existe um enorme déficit de profissionais.

Por fim, a parte de serviços prestados por plataformas online, o autor aponta que devem passar a existir os Mediadores Online.

Conclusão

Em um cenário de tanta incerteza e carência de análise sobre as particularidades do mercado das profissões jurídicas no Brasil, é realmente muito difícil saber quais são as competências do jurista do futuro.

Diante disso, independentemente do momento da carreira do interessado, o mais prudente parece ser se envolver profundamente com o mercado de trabalho no estado em que se encontra. A partir da compreensão do seu estado atual e das suas fragilidades, cada um poderá se organizar para aproveitar as oportunidades que se apresentarão.

Sem se envolver com o mercado real, as oportunidades não poderão ser nem percebidas como oportunidades reais, pois tudo estaria no campo da conjectura. Então estar atento às mudanças é a melhor recomendação que eu poderia dar, pelo menos a mais honesta.

É certo que, para aqueles mais focados em tecnologia, pode ser conveniente buscar se instruir formalmente em algum campo das ciências exatas. Em contraste, para as pessoas com mais aptidão comercial e de relacionamento, convém seguir atentos às modificações atinentes ao modelo de negócio da prestação de serviço jurídico.

No entanto, o maior interessado na resposta deste texto parece ser o estudante que ainda não e encontrou em nenhum desses extremos. O mais provável é que uma boa Faculdade de Direito brasileira esteja orientada a transformar seus egressos em pessoas capazes de desempenhar uma atividade de representação judicial, mediante atendimento pessoal, trabalhando passivamente sob medida para a causa que o cliente venha a lhe apresentar. Ou seja, essa é definição tradicional de advogado.

De outro lado, as Instituições de Ensino parecem investir pouco no desenvolvimento de competências voltadas ao trabalho em equipe, bem como na instrução híbrida de um perfil jurídico e também tecnológico, fortemente orientado a atender demandas do mercado e voltado a funcionar segundo as necessidades do mundo corporativo.

Imagino que o esforço do estudante para suprir tais lacunas em sua formação venha a ser recompensador, caso se confirmem as premissas supostas neste texto. Bem, ao menos essa é a minha reflexão para hoje.

Bibliografia

ABREU, Arthur Leal; FERRARI, Juliana. A formação do profissional jurídico do futuro. Disponível em: https://www.jota.info/carreira/diretrizes-curriculares-profissional-juridico-10052019. Acesso em: 11 maio 2019.

FEFERBAUM, Marina. Entenda o futuro dos curso e das profissões do Direito. Disponível em: http://revistaensinosuperior.com.br/futuro-do-direito. Acesso em: 11 maio 2019.

CUNHA, Luciana Gross et al. The Brazilian Legal Profession in the Age of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1017/9781316871959. Acesso em: 11 maio 2019.

HARVARD LAW SCHOOL. Center on the Legal Profession. Website. Disponível em: https://clp.law.harvard.edu. Acesso em: 11 maio 2019.

MAHARG, P. Transforming Legal Education: Learning and Teaching the Law in the Early Twenty-First Century. Aldershot: Ashgate Publishing, 2007.

ROBINSON, N. When Lawyers Don’t Get All the Profits: Non-Lawyer Ownership, Access, and Professionalism. Rochester, NY: Social Science Research Network, 27 ago. 2014. Disponível em: https://papers.ssrn.com/abstract=2487878. Acesso em: 12 maio. 2019.

SUSSKIND, R. E. Tomorrow’s lawyers: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2017.

SUSSKIND, R.; SUSSKIND, D. The Future of the Professions: How Technology Will Transform the Work of Human Experts. Oxford: Oxford University Press, 2015.

WILKINS, D. B.; FERRER, M. J. E. The Integration of Law into Global Business Solutions: The Rise, Transformation, and Potential Future of the Big Four Accountancy Networks in the Global Legal Services Market. Law & Social Inquiry, v. 43, n. 3, p. 981–1026, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1111/lsi.12311. Acesso em: 11 maio 2019.

Depois do hype da inteligência artificial jurídica: e agora?

No último British Legal Technology Forum, realizado em Londres nesta semana, foram discutidos vários assuntos relacionados a inteligência artificial aplicada ao direito. O blog Artificial Lawyer esteve lá e publicou uma reflexão interessante sobre uma nova onda de opiniões sobre inteligência artificial, a qual chamou de “Post-Hype AI Hype”.

Para quem não está familiarizado, hype é algo exagerado e com uma conotação negativa. Está em hype qualquer assunto que esteja dando o que falar, que esteja na moda, mas que ao mesmo tempo não tenha fundamento comprovado. No contexto da tecnologia, algo que esteja em hype traz consigo um grande receio de que o estado atual da tecnologia não seja suficiente para solucionar os problemas que se propõe a enfrentar.

O movimento atual, diagnosticado nesta semana ainda, sustenta que o ciclo de expectativas exacerbadas sobre o potencial da inteligência artificial estaria chegando ao fim. No lugar de discutir um futuro distante, esse movimento tem como objetivo refletir sobre aplicações práticas e imediatas, as quais geralmente demandam tecnologias já sedimentadas. Ou seja, formou-se um novo ciclo no setor contra a inteligência artificial - mas que não deixa de ser igualmente uma espécie de hype.

No fundo, temos agora um novo hype assumindo o lugar do outro. Nenhum deles foi deliberadamente criado, pois foi composto de uma soma de vozes que realmente acreditavam naquilo que prometiam como solução de todos os problemas. Hoje, recauchutado, o hype se organiza para evitar a terminologia até então celebrada, mas isso não é algo que venha sem qualquer dificuldade. Afinal, ainda que de forma imprecisa, inteligência artificial já é um termo incorporado ao vocabulário corrente. De toda forma, isso viabilizou a comunicação até agora.

Debater assuntos conexos falando de aprendizado de máquina, processamento de linguagem natural, classificação automática de decisões, entre outros termos, é algo que demandaria muito mais energia. Trata-se de algo que certamente não é do interesse das empresas que utilizam o jargão apenas como marketing, sem nenhum compromisso em embarcar a tecnologia que anunciam em seus produtos.

Parece que o termo inteligência artificial perdeu o seu frescor. Ao mesmo tempo - e não por acaso - algumas de suas promessas simplesmente não foram concretizadas para o mercado jurídico. Vivemos uma ressaca semelhante àquela que recentemente passou a medicina, pois a inteligência artificial não descobriu a “cura do câncer”. E nós continuamos sem a “cura para os processos”.

De ciclo em ciclo, o hype se revela como o próprio modo de ser de comunidades profissionais com domínio limitado sobre o que deveria ser discutido e compreendido em profundidade. Uma vez instalado, ele não se dissolve facilmente, sendo sucedido por uma nova promessa que também não se realizará. Esse encadeamento de promessas e frustrações é típico dos setores que consomem tecnologia, sem que tenham as ferramentas para sua compreensão total.

Assim, o hype é consequência da nossa própria falta de domínio técnico, da nossa consequente superficialidade nesse campo. São ingredientes adicionais o interesse de pessoas de alimentarem o hype, por exemplo, um conferencista que reafirme seu suposto saber ou empresas que vendam o hype, pois elas funcionam na lógica de uma comunicação imediata e facilitada.

Os elementos finais são as palavras inteligência e artificial, que transmitem um sentido bastante equívoco daquilo que realmente são quando utilizadas em conjunto. Seria melhor que essa tecnologia não tivesse seu conteúdo induzido por vocábulos que achamos que compreendemos, pois fazem parte da nossa linguagem em outros contextos.

Embora um advogado entenda plenamente os desafios jurídicos do seu trabalho diário, dificilmente compreenderia tudo o que circunda tecnologicamente os produtos disponíveis no seu mercado. Se ele fosse informado que a solução para os seus problemas estaria em usar inteligência artificial, muito possivelmente seria induzido a erro. Afinal, ele pode equivocadamente imaginar do que se trata. Em contraste, o mesmo advogado não seria afetado se recebesse um conselho para utilizar uma solução com base em “banco de grafos”.

Nomes técnicos não comunicam e também não vendem. Nesse sentido, a inteligência artificial é vítima dessa infeliz coincidência. Para escapar ao novo hype, será necessário que nossa comunidade se dedique a compreender o que realmente a inteligência artificial é e quais suas reais possibilidades. Do contrário, continuaremos na sucessão de hypes, que mais alienam do que informam.

Classificando decisões judiciais com inteligência artificial: segunda parte

Este post faz parte de uma série. Antes de ler, veja o post anterior.

Convencidos da utilidade de um classificador de decisões judiciais quanto ao seu desfecho, passamos a organizar os dados. O primeiro passo foi baixar os acórdãos do STF e elaborar um modelo relacional para estruturar as informações. Basicamente era necessário construir um acervo e os campos nos quais cada acórdão seria fragmentado.

Nesse propósito, foi elaborado um programa de computador capaz de fazer o download e guardar os dados separados por acórdão, classe, número e, especialmente, com identificação da respectiva certidão de julgamento. Como parece intuitivo, essa é uma fase que demanda um enorme investimento em termos de tecnologia, aliado a atenção da equipe de juristas para separar as partes do acórdão a serem consultadas para a posterior classificação das decisões.

Separamos o essencial de forma bastante detalhada e guardamos algumas informações em estado bruto para posterior revisão. Dividimos a equipe em responsáveis por ler as certidões de julgamento de cada classe processual, iniciando pelas seguintes: mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e recurso extraordinário. Resolvemos não trabalhar com outros processos, pois eram em número muito pequeno.

Enquanto as primeiras classes tinham poucos milhares de acórdãos cada uma, os recursos extraordinários foram avaliados em volume muito maior. Aliás, seu maior volume sempre foi um obstáculo a pesquisas empíricas de controle difuso de constitucionalidade, pois é preciso mais organização para trabalhar decisões na casa de dezenas de milhares de linhas. Realmente não é algo que um pesquisador apenas possa fazer.

Organizamos esses dados em uma plataforma de anotação, de tal modo que, em conjunto, a equipe de juristas tivesse condições de propor um modelo inicial de classificação de resultados dos acórdãos. Depois de muita discussão sobre as opções de construir um classificador mais complexo ou mais simples, surgiu o seguinte modelo:

Decidimos, assim, realizar um juízo preliminar (por maioria ou unanimidade), o qual, se positivo, levaria à avaliação do mérito. Do mesmo modo, o juízo de mérito foi bipartido em seus modos (maioria ou unanimidade) e respectivos desfechos: positivo e negativo. Por fim, especificamente para o juízo de mérito positivo, dividimos também a avaliação pela abrangência do provimento: total ou parcial.

A partir dessa sequência de juízos, ilustrada no radial, teríamos condição de ampliar a amostra para a casa das dezenas de milhares de acórdãos de forma consistente.

O que faltava apenas era uma plataforma de anotação que fosse capaz de abrigar esse trabalho, permitindo o acesso simultâneo dos pesquisadores ao acervo. Transferimos então o acervo para uma infraestrutura em nuvem dotada dessa capacidade e iniciamos a classificação. Um exemplo simplificado de como os dados estão estruturados, tomando como exemplo os mandados de segurança, é o seguinte:

Embora algumas partes da tabela tenham sido omitidas (o que preserva a originalidade da pesquisa até sua publicaçãoo), já é possível notar a estrutura que montamos para anotação do modo (maioria ou unânime). A título de exemplo, no caso dos recursos extraordinários, classificamos 3.972 acórdãos como unânimes, tendo as seguintes variações: unanimamente, unanimidade, unânime, acordo de votos e decisão uniforme.

Isso significa que, nesse ponto, nossa base de dados passou a contar com quase quatro mil vínculos devidamente etiquetados. São processos reais, dos quais conhecemos diversos atributos. A mesma filosofia vale para o vocabulário presente no acervo para classificar o desfecho (positivo ou negativo) do julgado. A diferença é que existem não apenas cinco, mas centenas de variações de palavras utilizadas para traduzir o desfecho de um acórdão.

Como sabemos muito sobre cada um desses processos, torna-se possível treinar uma máquina para que, reconhecendo um padrão, sugira uma etiqueta contemplando o modo (por exemplo, unânime) e o desfecho (por exemplo, desfavorável) diante um novo acórdão que venha a ser prolatado. Assim, ensinamos a máquina classificar rapidamente milhares de novas decisões, a partir da curadoria realizada pelos nossos pesquisadores.

O aprendizado de máquina em si também não é uma tarefa trivial e será objeto de um novo post. Tratamos até agora apenas da prepração dos dados, que é uma etapa essencial e frequentemente negligenciada. Sem dados devidamente organizados, não é possível desenvolver soluções de inteligência artificial.

Classificando decisões judiciais com inteligência artificial: segunda parte

Este post faz parte de uma série. Antes de ler, veja o post anterior.

Convencidos da utilidade de um classificador de decisões judiciais quanto ao seu desfecho, passamos a organizar os dados. O primeiro passo foi baixar os acórdãos do STF e elaborar um modelo relacional para estruturar as informações. Basicamente era necessário construir um acervo e os campos nos quais cada acórdão seria fragmentado.

Nesse propósito, foi elaborado um programa de computador capaz de fazer o download e guardar os dados separados por acórdão, classe, número e, especialmente, com identificação da respectiva certidão de julgamento. Como parece intuitivo, essa é uma fase que demanda um enorme investimento em termos de tecnologia, aliado a atenção da equipe de juristas para separar as partes do acórdão a serem consultadas para a posterior classificação das decisões.

Separamos o essencial de forma bastante detalhada e guardamos algumas informações em estado bruto para posterior revisão. Dividimos a equipe em responsáveis por ler as certidões de julgamento de cada classe processual, iniciando pelas seguintes: mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e recurso extraordinário. Resolvemos não trabalhar com outros processos, pois eram em número muito pequeno.

Enquanto as primeiras classes tinham poucos milhares de acórdãos cada uma, os recursos extraordinários foram avaliados em volume muito maior. Aliás, seu maior volume sempre foi um obstáculo a pesquisas empíricas de controle difuso de constitucionalidade, pois é preciso mais organização para trabalhar decisões na casa de dezenas de milhares de linhas. Realmente não é algo que um pesquisador apenas possa fazer.

Organizamos esses dados em uma plataforma de anotação, de tal modo que, em conjunto, a equipe de juristas tivesse condições de propor um modelo inicial de classificação de resultados dos acórdãos. Depois de muita discussão sobre as opções de construir um classificador mais complexo ou mais simples, surgiu o seguinte modelo:

Decidimos, assim, realizar um juízo preliminar (por maioria ou unanimidade), o qual, se positivo, levaria à avaliação do mérito. Do mesmo modo, o juízo de mérito foi bipartido em seus modos (maioria ou unanimidade) e respectivos desfechos: positivo e negativo. Por fim, especificamente para o juízo de mérito positivo, dividimos também a avaliação pela abrangência do provimento: total ou parcial.

A partir dessa sequência de juízos, ilustrada no radial, teríamos condição de ampliar a amostra para a casa das dezenas de milhares de acórdãos de forma consistente.

O que faltava apenas era uma plataforma de anotação que fosse capaz de abrigar esse trabalho, permitindo o acesso simultâneo dos pesquisadores ao acervo. Transferimos então o acervo para uma infraestrutura em nuvem dotada dessa capacidade e iniciamos a classificação. Um exemplo simplificado de como os dados estão estruturados, tomando como exemplo os mandados de segurança, é o seguinte:

Embora algumas partes da tabela tenham sido omitidas (o que preserva a originalidade da pesquisa até sua publicaçãoo), já é possível notar a estrutura que montamos para anotação do modo (maioria ou unânime). A título de exemplo, no caso dos recursos extraordinários, classificamos 3.972 acórdãos como unânimes, tendo as seguintes variações: unanimamente, unanimidade, unânime, acordo de votos e decisão uniforme.

Isso significa que, nesse ponto, nossa base de dados passou a contar com quase quatro mil vínculos devidamente etiquetados. São processos reais, dos quais conhecemos diversos atributos. A mesma filosofia vale para o vocabulário presente no acervo para classificar o desfecho (positivo ou negativo) do julgado. A diferença é que existem não apenas cinco, mas centenas de variações de palavras utilizadas para traduzir o desfecho de um acórdão.

Como sabemos muito sobre cada um desses processos, torna-se possível treinar uma máquina para que, reconhecendo um padrão, sugira uma etiqueta contemplando o modo (por exemplo, unânime) e o desfecho (por exemplo, desfavorável) diante um novo acórdão que venha a ser prolatado. Assim, ensinamos a máquina classificar rapidamente milhares de novas decisões, a partir da curadoria realizada pelos nossos pesquisadores.

O aprendizado de máquina em si também não é uma tarefa trivial e será objeto de um novo post. Tratamos até agora apenas da prepração dos dados, que é uma etapa essencial e frequentemente negligenciada. Sem dados devidamente organizados, não é possível desenvolver soluções de inteligência artificial.

Classificando decisões judiciais com inteligência artificial: primeira parte

Os profissionais do Direito consomem diversos tipos de informação jurídica, sendo duas as principais: a lei e a jurisprudência. A lei é uma norma abstrata, ou seja, não foi aplicada a um caso concreto. Já a jurisprudência é uma norma concreta, feita para solucionar um caso submetido ao Poder Judiciário.

Embora seja relativamente fácil conhecer as leis, pois elas estão publicadas em repositórios oficiais, é muito mais complexo conhecer a jurisprudência. O repositório legislativo mais utilizado é o do Planalto e ele ilustra bem como são organizadas e consumidas as várias formas de legislação federal no Brasil. Em contraste, existem diversos tribunais e cada um é responsável por publicar sua própria jurisprudência.

De uma forma geral, os tribunais tratam esses dados como documentos em linguagem natural, com uma camada adicional relativamente limitada de metadados.

Assim, existem poucos filtros para acessar essa informação, por exemplo: a data do julgado, o nome do julgador, o órgão ao qual pertence esse julgador, o nome e a posição de cada parte no processo, etc. Não encontramos, contudo, nenhum repositório público organizado em torno da dimensão do resultado do julgado, se favorável ou desfavorável seu desfecho.

Consideremos o seguinte caso de uso:

É possível imaginar que um advogado de um banco faça uma pesquisa de jurisprudência em determinado tribunal para avaliar a chance de êxito de uma nova demanda.

Tal como está indexada a base de julgados do STF, ele consegue, com alguma facilidade, encontrar casos concretos que trataram de um determinado tema. Contudo, o advogado tem muita dificuldade em encontrar, dentro desse tema, quais foram os casos vencidos por bancos e nos quais os mesmos bancos foram derrotados.

A utilidade de desenvolver uma solução que compreenda quais são os casos favoráveis e desfavoráveis está em viabilizar uma consulta agregada também por essa dimensão, referente ao resultado do julgado. Afinal, a consulta profissional tem quase sempre um lado interessado, de tal modo que saber qual o desfecho do caso é uma informação muito importante para a vida prática dos profissionais do Direito.

Nas próximas semanas, publicaremos por aqui a jornada de vários dos pesquisadores do DireitoTec, dedicados a mapear dezenas de milhares de julgados do STF. Isso permitirá criar uma base para treinamento de inteligência artificial, de tal modo que seja possível classificar automaticamente o desfecho de um acórdão. Que tal? Parece promissor?


Este post faz parte de uma série. Veja o post seguinte.

Classificando decisões judiciais com inteligência artificial: primeira parte

Os profissionais do Direito consomem diversos tipos de informação jurídica, sendo duas as principais: a lei e a jurisprudência. A lei é uma norma abstrata, ou seja, não foi aplicada a um caso concreto. Já a jurisprudência é uma norma concreta, feita para solucionar um caso submetido ao Poder Judiciário.

Embora seja relativamente fácil conhecer as leis, pois elas estão publicadas em repositórios oficiais, é muito mais complexo conhecer a jurisprudência. O repositório legislativo mais utilizado é o do Planalto e ele ilustra bem como são organizadas e consumidas as várias formas de legislação federal no Brasil. Em contraste, existem diversos tribunais e cada um é responsável por publicar sua própria jurisprudência.

De uma forma geral, os tribunais tratam esses dados como documentos em linguagem natural, com uma camada adicional relativamente limitada de metadados.

Assim, existem poucos filtros para acessar essa informação, por exemplo: a data do julgado, o nome do julgador, o órgão ao qual pertence esse julgador, o nome e a posição de cada parte no processo, etc. Não encontramos, contudo, nenhum repositório público organizado em torno da dimensão do resultado do julgado, se favorável ou desfavorável seu desfecho.

Consideremos o seguinte caso de uso:

É possível imaginar que um advogado de um banco faça uma pesquisa de jurisprudência em determinado tribunal para avaliar a chance de êxito de uma nova demanda.

Tal como está indexada a base de julgados do STF, ele consegue, com alguma facilidade, encontrar casos concretos que trataram de um determinado tema. Contudo, o advogado tem muita dificuldade em encontrar, dentro desse tema, quais foram os casos vencidos por bancos e nos quais os mesmos bancos foram derrotados.

A utilidade de desenvolver uma solução que compreenda quais são os casos favoráveis e desfavoráveis está em viabilizar uma consulta agregada também por essa dimensão, referente ao resultado do julgado. Afinal, a consulta profissional tem quase sempre um lado interessado, de tal modo que saber qual o desfecho do caso é uma informação muito importante para a vida prática dos profissionais do Direito.

Nas próximas semanas, publicaremos por aqui a jornada de vários dos pesquisadores do DireitoTec, dedicados a mapear dezenas de milhares de julgados do STF. Isso permitirá criar uma base para treinamento de inteligência artificial, de tal modo que seja possível classificar automaticamente o desfecho de um acórdão. Que tal? Parece promissor?


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Construindo um laboratório de ciência de dados jurídicos

Para tratar de um assunto tão complicado, gostaria de iniciar por uma noção bastante simples: uma corrente é tão forte quanto seu elo mais frágil. Então, se você está em busca de construir (ou ingressar em) um laboratório de ciência de dados juridícos, dentro da sua universidade, é preciso investigar como está a força de cada uma das seguintes etapas:

  • Você tem pesquisas anteriores que já permitiram compreender o contexto jurídico de um campo delimitado? Em outras palavras, você já domina a área do negócio?
  • Sua pesquisa anterior se esgotou ou foi limitada pela ausência de dados? Ou seja, só é possivel alcançar um novo nível científico após desbravar esse horizonte?
  • Após confirmar as limitações do passo anterior, você formulou problemas cujas respostas podem ser obtidas a partir de dados?
  • Além dos problemas, você já formulou hipóteses passíveis de teste com esses dados?
  • É possível obter os dados demandados pela sua hipótese? Esses dados estão disponíveis ao menos de forma desestruturada?
  • Se necessário, você tem condições de estruturar esses dados?
  • Depois de estruturar os dados, você terá condições de manter a atualização e evoluir na modelagem dos dados? Em outras palavras, o quanto sua pesquisa é descartável?
  • Além de você, já existe uma equipe com cultura de dados que possa compreender os desafios desse tipo de pesquisa e está disposta a caminhar nessa direção?
  • Sua equipe tem uma rotina de trabalho e gestão do conhecimento que permitam tocar planos individuais relativamente simples em paralelo (por exemplo, alguns TCC), orientadas por marcos que amparem pesquisas mais sofisticadas no futuro (por exemplo, uma tese de doutorado)?
  • Você já documentou um ciclo de formação mínimo para embarcar novos pesquisadores? Existem alternativas mais econômicas a um ciclo de formação que dependa de você? Por exempo, já existe um curso de formação de ciência de dados de oferta regular e acessível aos potenciais membros da sua equipe?
  • Além de seus subordinados, você conta com pessoas com conhecimento de outras áreas que tenham condição de confirmar a viabilidade da sua ambição?
  • Ou seja, tendo como objetivo realizar pesquisas empíricas em direito (ciência social aplicada), você tem uma rede para evoluir em parceria com conhecimentos de suporte tecnológico (ciências exatas)?
  • Você está aberto a aceitar e orientar seu planejamento a partir dessa análise de viabilidade, conjugando projetos de pesquisa imediatamente viáveis e um horizonte de inovação a ser desbravado?
  • O resultado das pesquisas podem ser incorporadas a produtos que tenham valor para o mercado? Você já tem um plano para ter acesso ao mercado?

É claro que esse não é um caminho único. Existem diversos tipos de laboratório, principalmente quando se trata do contexto universitário, no qual boa parte dos recursos dos laboratórios são demandas de atividade de ensino ou de pesquisa básica. Mas, se você está envolvido na construção de um laboratório que tenha finalidade jurídica e que trabalhe com dados, talvez queira tomar certas cautelas. Afinal, tecnologia não e sua área principal.

Em conclusão, construir um laboratório não é o mesmo que comprar equipamentos. Um laboratório é construído em torno de problemas a serem solucionados. E esses não são problemas pequenos, pois exigem colaboração de diversas áreas para serem superados. O ambiente de trabalho e a cultura desse grupo de pessoas são os alicerces do laboratório. Na verdade, é algo bastante intangível.

Em um mundo no qual a infraestrutura tecnológica passou a ser consumida como serviço (computação em nuvem), ter os recursos físicos não é mais vantagem competitiva absoluta. O real desafio é desenvolver um trabalho que concilie pesquisa e inovação com a urgência e o pragmatismo demandados pelo mercado.

Afinal, nessa área, sem o mercado não há pesquisa financiada. E, sem dinheiro, não estarão presentes as demais condições para criar e manter um laboratório desse tipo. Minha recomendação é que não vá às compras no primeiro dia, pois antes você precisa responder à lista de perguntas listadas no inicio do post.


PS: Enquanto escrevia o post, tomei conhecimento que o CNJ, pela Portaria 25/19, criou um laboratório (chamado Inova PJe) e um Centro de Inteligência Artificial. Não acho que as reflexões do post seja plenamente aplicáveis a laboratórios institucionais. Na verdade, vejo mais o CNJ como uma instância decisória do que operacional. A operação propriamente dita ocorreria, por exemplo, em convênio com um laboratório acadêmico, cujo funcionamento descrevi no post.